Bullying: provocação tem limite.

Com a entrada em vigor da Lei nº 13.185, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática, as escolas passaram a ser responsáveis pela prevenção ao bullying. Saiba o que muda na prática e conheça alguns programas que deram certo

 

Crianças caçoam de crianças, seja no ambiente familiar, social ou escolar. É assim desde sempre. Mas quando a provocação deixa de ser uma brincadeira e torna-se bullying, ou seja, uma prática sistemática de agressões físicas ou verbais? O limite entre essas práticas é tênue, e os estragos podem ser irreparáveis. Para se ter uma ideia da gravidade da questão, um em cada cinco adolescentes brasileiros pratica bullying, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) 2012, realizada pelo IBGE com 109.104 alunos do 9º ano do ensino fundamental em um universo de 3.153.314 sujeitos. De acordo com a pesquisa, a prática é mais comum em grupo e entre meninos, tendo como vítima 7,2% dos estudantes.

 

Outra pesquisa, realizada em 2010 pela ONG Plan Brasil, mostrou que 28% dos alunos de escolas públicas e particulares brasileiras disseram já ter sido vítimas de maus-tratos; destes, 10% sofreram bullying, 13,1% admitiram brigar, amedrontar ou intimidar outras crianças com frequência, enquanto 23,5% afirmaram já ter sido perseguidos ou atormentados por outras crianças. Cerca de 5% dos alunos que já foram vítimas de bullying apresentam problemas como transtorno de ansiedade, transtorno depressivo, déficit de atenção e hiperatividade, entre outros.

 

O Brasil, infelizmente, não está sozinho nas estatísticas. O bullying é um problema global, segundo relatório divulgado em 2006 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef): cerca de um terço dos estudantes entrevistados no mundo todo pela entidade disse ter sofrido bullying recentemente. Nos Estados Unidos, 19,9% dos estudantes do 9º ao 12º ano disseram ser vítimas de bullying na escola por mais de um ano letivo, conforme pesquisa realizada em 2009 pelo Centers for Disease Control and Prevention. A diferença é como se lida com o problema. “Em diversos países, como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Reino Unido, o tema bullying é parte do projeto político-pedagógico das escolas, o que faz dessa temática um assunto constantemente presente nas instituições de ensino”, afirma Benjamim Horta, fundador da ABRACE — Programas Preventivos.

 

Responsabilidade na lei
Para que as escolas brasileiras assumam sua parcela de responsabilidade pela integridade emocional e física dos alunos, entrou em vigor em fevereiro a Lei nº 13.185, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática em território nacional. O documento estabelece que as instituições de ensino promovam medidas de conscientização, prevenção e combate a todos os tipos de violência, com ênfase nas práticas recorrentes de intimidação sistemática (bullying), ou constrangimento físico e psicológico, cometidas por alunos, professores e outros profissionais da comunidade escolar.

 

Segundo o vice-presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo (SIEEESP), José Augusto de Mattos Lourenço, nada muda com a nova legislação. “Na realidade, não precisaria de lei. As escolas já vêm trabalhando sobre isso, temos material, cursos com palestrantes que orientam as escolas, parceria com o Ministério Público”, afirma. De fato, de acordo com a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça, crueldade e toda forma de opressão e violação dos direitos da criança e do adolescente. Na prática, contudo, não funciona bem assim. O que acontece, muitas vezes, é um “jogo de empurra” entre escola e família, e a legislação chega para colocar os pingos nos “is”.

 

Para a advogada Alessandra Borelli Vieira, diretora-executiva da Nethics — Educação Digital, a nova legislação é a peça que faltava para o quebra-cabeça, já que em seu texto encontram-se claramente contempladas todas as providências que deverão ser adotadas para que se alcance o objetivo proposto pelo Programa de Prevenção ao Bullying. “Se, na hipótese de um incidente do gênero, chegar-se à conclusão de que a escola não implementou tais providências, poderá estar caracterizada sua omissão ou negligência, argumentos suficientes para a sua responsabilização civil”, explica Alessandra.

 

A advogada Patricia Peck Pinheiro, especialista em direito digital, considera fundamental a lei ter deixado clara a diferença entre o que é bullying e o que não é, pois exigiu como requisitos a intenção e a repetição. Logo, se não há intenção e o fato ocorreu uma única vez, pode ser caracterizado como uma brincadeira, desde que o envolvido também se arrependa, peça desculpas e não faça de novo. “Isso foi um avanço para evitar que tudo se torne bullying e os jovens passem a ter medo de desenvolver relações sociais ou manifestar suas opiniões”, alerta a especialista. “Afinal, eles estão na idade de aprender a exercer a liberdade dentro da ética, da lei, com limites. Por isso, podem errar e corrigir o erro com o compromisso de não reincidir”, esclarece Patricia.

 

A advogada acredita que a lei traz um grande impacto cultural e exige uma reflexão da família brasileira, visto que foi enquadrado como bullying, por exemplo, o uso de apelidos pejorativos, prática muito comum no cotidiano familiar e social dos brasileiros, seja na escola, em casa ou até no trabalho, bem como as piadas direcionadas de modo pessoal que têm o caráter de diminuição e ridicularização de alguém. Também foi incluída no rol de ações que tipificam o cyberbullying a divulgação sem autorização de imagem com cenas de nudez, responsabilizando a todos aqueles que a recebem e repassam.

 

Trabalho conjunto
Se a educação começa em casa, o combate ao bullying deveria ter início na família. Esta, no entanto, tem estado cada vez mais distante do cotidiano escolar dos filhos, conforme relata Patricia Peck Pinheiro, que atua em escolas desde 2005. “Antigamente, a escola tinha controle sobre o aluno em seu perímetro físico. Quando estava dentro dos muros da escola, ele ficava protegido, mas agora esse aluno vem para a escola com celular, acessa a internet, e isso foge completamente da possibilidade de proteção dos colégios”, observa. “A vigilância no uso desses recursos depende de um compromisso participativo dos pais e de que eles fiquem do lado da escola”, alerta a advogada.

 

Para Patricia, a instituição de ensino deve cumprir a missão de informar, educar, avisar imediatamente aos pais se houver algum incidente com o aluno, mas cabe a eles o dever de vigiar o que os filhos acessam no ambiente digital. “Basta querer saber a verdade! As máquinas são testemunhas que tudo contam”, destaca a especialista. “Espero que essa nova lei, com a qual fazer a campanha preventiva passou a ser uma obrigação legal, e não apenas uma iniciativa pedagógica, ajude a mudar tal cenário”.

 

Além da obrigatoriedade de promover ações preventivas com os alunos para combater o bullying e o cyberbullying por meio de cartilhas específicas, dirigidas a seu público-alvo, e de envolver as famílias no programa de prevenção por meio de palestras dirigidas aos pais ou adotar outras iniciativas, as instituições de ensino estão obrigadas a capacitar os professores e a rever os regimentos internos para se adequar à legislação.

 

“O que a nova lei exige, basicamente, é um compliance educacional”, define a advogada Ana Paula Siqueira Lazzareschi de Mesquita, coordenadora do Programa “Proteja-se contra Prejuízos do Cyberbullying”. Em outras palavras, as escolas precisam adotar medidas para fazer cumprir as normas legais e regulamentares, as políticas e as diretrizes estabelecidas para o negócio e para as atividades da instituição, assim como evitar, detectar e tratar qualquer desvio ou inconformidade que possa ocorrer.

 

“A escola esquece que é uma empresa que precisa adotar procedimentos para prever condutas e eventuais punições ou sanções sociopedagógicas”, ressalta Ana Paula.

 

Prevenir para não precisar punir
No Colégio Sete de Setembro, em Paulo Afonso (BA), os casos de bullying e cyberbullying eram sistemáticos e aconteciam em todos os níveis, da educação infantil ao ensino médio. Por isso, em 2013, a escola criou um programa de prevenção, propondo uma campanha que envolveu toda a comunidade escolar. O programa tem dois pilares: o primeiro é pedagógico, incluindo campanhas informativas e preventivas que regem os processos transversais do ensino, trabalhando o tema através de pesquisas, projetos em sala de aula, análises de situações práticas e produções textuais.

 

O segundo pilar é a intervenção quando ocorrem agressões físicas ou psicológicas. Após ouvir as partes com imparcialidade, comunica-se aos responsáveis o ocorrido e, quando necessário, aplica-se uma pena, conforme previsto no regimento escolar. A psicopedagoga Kátea Barros, coordenadora geral do Colégio Sete de Setembro, afirma que já se notou uma redução na prática do bullying e do cyberbullying após a implantação do programa. “O mais importante é que, quando acontecem situações de intimidação sistemática, tanto a vítima quanto os espectadores reconhecem e procuram ajuda de uma pessoa adulta”, conta.

 

Em 2014, antes de a lei exigir ações concretas das instituições de ensino para combater o bullying e o cyberbullying, a Escola Soka, de São Paulo, também já havia implantado códigos de conduta digital para gestores, educadores, funcionários, alunos e pais, mesmo sem que qualquer caso grave tivesse ocorrido previamente no colégio. “Essa violência sistemática não ocorreu aqui. O projeto vem somar-se à filosofia da escola para que não aconteça”, ressalta Cristina Ranieri, vice-diretora da instituição.

 

A prevenção ocorre por meio da criação de um código de conduta digital, campanhas periódicas de conscientização para os funcionários, professores, pais e alunos e a criação de uma cartilha, que alerta para os riscos do bullying e do cyberbullying. Os resultados já começaram a aparecer. “Os alunos ficam mais atentos à própria postura e também à dos outros com eles, demonstrando uma noção mais clara de seu comportamento”, afirma Cristina. “Eles refletem sobre como se comportam diante de uma situação de bullying, entendendo que não adianta apenas ‘eu ser feliz’. Todos ao meu redor também precisam ser felizes”, acrescenta a vice-diretora.

 

Desde que foi implantado o programa “Bullying: na minha escola, não”, em 2010, a Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental do Cararu, na cidade de Eusébio (CE), não registrou nenhum caso de cyberbullying e relata apenas casos simples e isolados de bullying. “Nos três últimos anos, os pequenos casos que acontecem são solucionados no mesmo dia”, afirma Guiomar Martins Frota Gonçalves Moreira, diretora da escola. “Embora não haja casos graves de bullying, lançamos o projeto com o intuito de prevenir os problemas que possam surgir”, explica.

 

O programa adotado pela escola está baseado em três ações principais: sensibilizar os professores para identificar casos de bullying em sala de aula, discutir como agir diante de uma situação desse tipo e como trabalhar a prevenção; sensibilizar os pais para que possam identificar e trabalhar na prevenção do bullying no ambiente familiar; elaborar e apresentar palestras em sala de aula com a participação dos alunos de forma lúdica, com desenhos, cartazes, paródias, caça-palavras, vídeo, músicas, debates e teatro de bonecos.

 

Segundo Benjamim Horta, da ABRACE — Programas Preventivos, o engajamento de todos, e não apenas da escola, é fundamental para se combater o bullying e o cyberbullying. “A violência praticada no ambiente escolar tem grande influência externa e, por esse motivo, é necessário que pais e comunidade também se unam nessa luta”, ressalta. “Como um ato de bullying se estabelece e se concretiza no ambiente escolar, as instituições de ensino precisam sim ter ciência de sua responsabilidade. No entanto, combater tais práticas vai além dos muros das escolas”.

 

 

Reportagem // Daniele Zebini
Fone: Revista Pátio

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