As aulas estão recomeçando e com elas retorna um problema que, às vezes silencioso, afeta a autoestima e o desempenho escolar da alunada. Estamos falando de bullying. O termo surgiu na língua inglesa, bully, que significa tirano, brigão, valentão. Em Santa Catarina, 67% dos estudantes já sofreram bullying nas escolas. Existem muitas formas de praticar a intimidação que causa traumas: de forma silenciosa, excluindo determinada criança do grupo.
Outras vezes, de forma violenta, machucando, rasgando a roupa, roubando o dinheiro ou o lanche. Pode ser também virtual, praticada nas redes sociais através da internet. Independente da forma, o diagnóstico é o mesmo: tanto quem pratica como quem sofre bullying precisa de ajuda. Para esclarecer as dúvidas d sobre o tema, a jornalista Franciele Marcon entrevistou Benjamim Horta, pedagogo e filósofo da Abrace Programas Preventivos, instituição que se propõe a ajudar as escolas e famílias a transformar os ambientes sociais. As fotos são de Mariana Vieira.
DIARINHO – As aulas começam esta semana na região. Um dos problemas que marcam crianças e jovens na atualidade é o que chamamos de bullying. O que pode ser feito pelos professores e pelas escolas para evitar?
Benjamim: Em primeiro lugar existe uma hipérbole a respeito do termo bullying. Muitos pensam ser bullying o que não é. E muitos pensam não ser, o que às vezes é. A gente precisa, em primeiro lugar, que as escolas e que os pais entendam de fato o que é bullying e que ele faz parte da psicodinâmica escolar. Onde existe escola, existe a possibilidade de acontecer o bullying. Ter consciência que acontece e, principalmente, que compromete não só a saúde, mas inclusive o processo de aprendizagem da criança, é importante. É preciso entender o que é bullying. Bullying são todos os comportamentos agressivos de um aluno contra o outro, de um grupo de alunos contra outro grupo de alunos, ou de um grupo contra um aluno só. O aluno que pratica o bullying contra o outro, tem a intenção de ferir, de humilhar. Lembrando que a questão de ser agressivo, não é só a agressividade física. A agressividade vai acontecer de várias formas: social, psicológica, material, física. O bullying é agressivo, é intencional e ele é repetitivo. Ele vai ser um ato recorrente. Não precisa ser todo dia e nem dentro de uma periodicidade específica, mas ele vai ser um ato frequente. Então é importante que se tenha consciência da seriedade e que, principalmente, aplique políticas de prevenção nas escolas. Outra questão importante é que a escola mantenha um contato com os pais e tenha um diálogo aberto sobre bullying. Porque, muitas vezes, um núcleo empurra para o outro, a família empurra pra escola, a escola culpa a família e na verdade precisamos abrir um diálogo para que um auxilie o outro.
DIARINHO – Qual a diferença do bullying para uma brincadeira normal de jovens? O que o caracteriza?
Benjamim: Bullying é uma forma de violência que vai acontecer nas escolas. Eu sempre digo o seguinte aos alunos: brincadeira é quando todos estão se divertindo. Quando alguns estão se divertindo as custas de outros, aí tem algo errado. Quando a gente faz as intervenções com os alunos, perguntamos ao agressor: “o que está acontecendo?”. Ele responde: “estava brincando”. Mas na verdade ele não estava brincando. Para ele, talvez, fosse até uma brincadeira de mau gosto, mas para quem está chorando e sendo agredido, não é. O que vai diferenciar bullying de brincadeira, a gente vai ter inclusive o que vamos chamar de tough play – brincadeira durona – entre amigos. Eles brincam se empurrando, mas não existe uma desigualdade de poder entre eles. Não há intenção de ferir um ao outro. Vai acontecer também no ambiente escolar, algumas formas de desentendimento e violências pontuais. São alunos que estão ali interagindo, na hora do esporte, na hora do trabalho, acontece alguma divergência, eles vão se ofender, mas isso não vai ser bullying. Confundir bullying com outras ações, dinâmicas das interações que acontecem nas escolas é muito fácil. O que vai diferenciar: brincadeira é quando está sendo promovida uma certa saúde no processo. Bullying é quando estão usando de perversidade.
DIARINHO – Há estudos que mensuram quantos alunos são atingidos por bullying nos colégios catarinenses?
Benjamim: O PeNse [Pesquisa Nacional de Saúde Escolar], em parceria com o IBGE e com o MEC, a cada dois anos faz uma pesquisa sobre a saúde na escola. Eles levantam diversas informações, como o nível de drogadição, violência familiar, até mesmo o desenvolvimento escolar. Dentro dessa pesquisa eles incluem a violência e o tema bullying. Segundo a pesquisa de 2015, a média do índice de bullying em Santa Catarina é de 67% – o que é altíssimo. A média brasileira, saiu uma pesquisa da ONU, que foi realizada em 18 países, é de 43%. [Porque em Santa Catarina está tão alto?] Olha, é uma pergunta que eu também me fiz, quando eu vi esse índice. Pode ser uma questão cultural, mas a gente ainda está analisando o porquê disso.
DIARINHO – Quais comportamentos devem chamar a atenção dos pais que podem ser indicativos de perseguições na escola?
Benjamim: A maioria dos alunos não têm coragem de contar que está sofrendo bullying. Eles têm medo de retaliação, têm medo que uma intervenção seja feita de forma errada e venha a piorar o problema. E porque eles têm um pouco de vergonha de relataram um problema que não conseguem resolver sozinhos. Tem outra questão que, às vezes, influencia muito esse fato de não contar, que é o ceticismo dos alunos com a ação dos adultos. Eles pensam que as nossas prioridades são outras e que não devem nos ocupar ou preocupar com questões que “parecem bobeiras”. Aprender a conviver é um dos principais aprendizados no ambiente escolar. Quando o aluno não conta, alguns outros comportamentos vão evidenciar a possibilidade de estar sofrendo ou praticando bullying. No caso de quem sofre, qualquer mudança habitual no comportamento: roupas rasgadas sem explicação, material danificado sem explicação, queda brusca no rendimento escolar, fobia escolar ou rejeição ao ambiente escolar, rejeição às atividades sociais da escola, até mesmo chegar com uma fome exagerada em casa. Muitas vezes, quem pratica bullying se beneficia da dinâmica do bullying tirando o lanche ou o dinheiro do lanche. [E os sintomas de quem pratica?] Indisciplina, toda a forma de louvor à violência. Todo aluno que evidencia a violência como forma de resolver conflitos; alunos que tendem a fazer uso de álcool ou outras substâncias, no caso dos adolescentes; desrespeito às autoridades; notas baixas – os alunos que praticam bullying não se dedicam aos estudos. Existe um mito de que os alunos que praticam bullying são inseguros. Isso é um mito. É ao contrário. Os estudos mostram que os alunos que praticam bullying são extremantes confiantes, têm uma ótima autoestima e prazer em dominar os outros. Precisamos entender que o aluno que sofre bullying precisa de ajuda, mas o que pratica também. Na sociedade brasileira temos a mania de superproteger quem sofre e de recriminar quem pratica. Obviamente, é um ato de injustiça e deve ser reparado. No entanto, a gente precisa entender que o ato de praticar bullying é um grito de desespero. É uma expectativa inconsciente que não foi suprida pelo ambiente social ou pelo ambiental familiar.
DIARINHO – Vários especialistas dizem que vivemos em uma sociedade sem limites. Essa falta de limite se evidencia no aumento dos casos de bullying?
Benjamim: Sim. A permissibilidade se tornou uma moeda de troca para compensar ausência. Nós vemos pais ausentes, famílias ausentes e para compensar isso, o pensamento é o seguinte: “não vou chamar a atenção do meu filho, porque eu passo tão pouco tempo com ele que não quero ser considerado chato”. Isso acaba influenciando o ambiente escolar e influencia até mesmo o papel dos educadores, que acabam se vendo na obrigação de não só transmitir o conhecimento, o conteúdo, mas promover outras formas de educação que cabem aos pais, ao ambiente familiar. Essa permissibilidade atual precisa ser revista. A expectativa da criança é de ser amada, de ter supridas suas necessidades básicas e ser direcionada de forma ética e de forma moral. De ser educada e corrigida, não de forma violenta, mas de forma didática.
DIARINHO – Que tipo de consequências a criança submetida a essa perseguição pode sofrer se o problema não for sanado?
Benjamim: Diversas consequências, inclusive não só em curto prazo, mas a médio e longo prazo também. Alguns estudos feitos no Canadá e nos Estados Unidos apontam que os alunos que sofreram bullying na adolescência se tornaram adultos com depressão, instabilidade emocional, problemas no trabalho, no relacionamento. O bullying vai afetar a curto, médio e longo prazo. Vai afetar não só quem sofre, mas quem pratica. Tem um estudo que mostra que 65% dos alunos que praticavam bullying na adolescência tiveram pelo menos uma passagem pela polícia até os 24 anos de idade. Os outros 35% tiveram três passagens pela polícia até os 24 anos. Isso em pesquisas feitas na Escandinávia. A violência é um ciclo, se não for quebrada na escola, na adolescência, ela vai perdurar e vai se estender à fase adulta.
DIARINHO – Com o advento da tecnologia e o acesso à internet, o bullying ganha proporções imediatas e graves pela facilidade com que viraliza nas redes sociais, com brincadeiras e fotos sendo envidas por WhatsApp ou Facebook. Qual seria a idade ideal para os pais liberarem o uso de celulares e computadores?
Benjamim: Algumas pesquisas mostram que a idade mínima é a partir dos sete anos, porque antes disso os tablets e celulares vão prejudicar o desenvolvimento psicomotor das crianças. Muitos pais entregam para crianças com três anos, quatro anos, para elas brincarem e isso está prejudicando o desenvolvimento psicomotor da criança. Eu acredito que, além disso, é importante ensinar às crianças o que chamamos de “ética digital”. A internet foi criada para o nosso benefício, mas o índice de cyber-bullying tem aumentado muito. Há três anos as nossas pesquisas apontavam 3, 4% de cyber-bullying nas escolas. Hoje estamos chegando a 12, 13%. Com o aumento do uso dos celulares, da tecnologia, obviamente, vai haver um aumento de cyber-bullying. Ensinar a ética digital para as crianças é muito importante. Eu sempre dou uma dica para os pais e para os alunos: quando postar alguma coisa na internet, quando disser algo para alguém através do celular, pense o seguinte: se eu estivesse frente a frente com essa pessoa, eu teria coragem de falar dessa forma ou de dizer a mesma frase? Essa desumanização tecnológica acaba prejudicando a nossa percepção do outro. Acaba nos desumanizando. Não estamos lidando com uma máquina, do outro lado existe gente de verdade que está lendo e vendo as nossas fotos. Precisamos pensar nas nossas ações e como essas ações vão comprometer o outro. Não só no ambiente físico, mas também no ambiente virtual.
DIARINHO – Dados mostram que 46,6% dos estudantes do último ano do ensino fundamental já se sentiram humilhados por colegas, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNse), realizada em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, quase metade dos alunos passou por isso. Como isso é encarado pelos educadores?
Benjamim: O bullying é um comportamento muito subjetivo. No dia a dia dos educadores, não é que eles sejam negligentes ou omissos, mas muitas vezes o bullying vai exigir uma atenção especial da parte deles para perceber realmente o que está acontecendo. Culpar a escola é muito fácil. Mas o que precisamos é auxiliar a escola a entender; a demanda é alta. Eles estão sobrecarregados pelo conteúdo que têm que ser aplicado durante o ano e, além disso, tem que ficar resolvendo conflitos que acontecem no dia a dia. A Abrace existe para isso, quando nós entramos nas escolas ajudamos e nos encarregamos de responder junto a escola pelo trabalho, pela prevenção e de forma combativa. Quando falamos sobre bullying, muitos alegam: “nós queremos tratar, nós até sabemos como, mas nós precisamos de ajuda”. Importante que os leitores do jornal entendam a importância de auxiliar a escola, auxiliar os educadores a prevenir o bullying, inclusive em um ambiente onde o aluno é mais influenciado em direção a violência, que é no ambiente familiar. Ainda existe essa questão de maquiar também. De falar: na minha escola não tem bullying. Ótimo, talvez não tenha, mas vamos trabalhar, vamos descobrir? Por que o bullying físico é evidente, você vê acontecendo, você vai lá e intervém. O bullying verbal, você ouve e vai lá e faz a intervenção. O social? O aluno que está sendo excluído de um grupo com a intenção de ser prejudicado por esse grupo e a gente não percebe.
DIARINHO – Qual a responsabilidade da escola sobre o cyberbullying?
Benjamim: Eu sempre digo que na maioria dos casos norteamericanos de cyberbullying, a gente tem pesquisado, e as cortes dizem que a partir do momento que aquilo que está acontecendo no ambiente virtual influencia no ambiente escolar, é sim responsabilidade da escola fazer uma intervenção e auxiliar os pais. Houve? Prejudicou o ambiente escolar? A escola tem autoridade dentro da legislação para fazer uma intervenção.
DIARINHO – A Lei nº 13.185 instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática. O que mudou a partir daí para as escolas?
Benjamim: A lei propõe que todas as instituições de ensino do território nacional apliquem projetos e programas de prevenção ao bullying. O MEC ainda está regulamentando e traçando uma meta para medição do que está sendo feito. A lei estipula que eles façam relatórios, anotem os casos e as intervenções. Eu recomendo que enquanto o MEC ainda está regulamentando isso, que eles já comecem a registrar todas as ações que estão sendo feitas. Todos os casos, todas as intervenções, capacitações. É importante que se entenda: existem ações específicas propostas na lei que devem ser seguidas. Muitas escolas têm feito só palestra, pensam que a leitura de um livro é suficiente, que uma palestra é suficiente, masnão. Tem que haver a capacitação dos educadores, tem que haver trabalho com os pais, trabalho sistematizado com os alunos, tem que haver uma intervenção nos casos de bullying. Porque se fizermos de forma incompleta, o resultado obviamente vai ser incompleto e inclusive levantar o tema e não tratar pode acabar piorando o comportamento dos alunos.
DIARINHO – O senhor também trata da prevenção de assédio moral na administração pública. Quais práticas são mais comuns e como evitá-las?
Benjamim: A grande questão é que o assédio moral, muitas vezes, se torna uma forma de gestão. Quando a gente fala sobre assédio moral descendente, vertical, do chefe para o subordinado, muitas vezes vamos pensar em uma dinâmica perversa. Porém, muitos que estão em cargos elevados, pensam que é uma dinâmica de empurrar o funcionário, pressionar o funcionário para que o trabalho seja feito. Mudar a consciência, conscientizar os gestores que não é assim que se estabelece uma relação, é fundamental. A gente vê em diversos setores, que essa ainda é uma forma de gestão. Eu pressiono porque eu estou sendo pressionado. É um dominó de ações e de assédios. O estresse, uma das principais consequências do assédio moral, vai acarretar diversas outras consequências, inclusive vai afetar o rendimento do próprio funcionário. Eu prefiro ter um funcionário feliz, que vai ter um bom rendimento, do que pressioná-lo para cumprir e um ano depois eu responder um processo ou ver o funcionário adoecido e pedindo auxílio doença. Tem um dado importante da UNB [Universidade de Brasília], de 2011, que mostra que 1,3 milhão trabalhadores do Brasil pedem auxílio doença anual por sintomas relacionados ao assédio moral. Isso acarreta um prejuízo de 3.5% no PIB. Isso mostra que é uma dinâmica patológica e precisa ser mudada.
Fonte: Diarinho – www.diarinho.com.br