Palmadinha educativa, tapa pedagógico ou punição preventiva são alguns dos termos usados por aqueles que recorrem ao castigo físico na educação dos filhos, a fim de justificá-lo. Porém, uma lei aprovada pela Câmara no dia 21 de maio pode levar esses pais a rever os seus métodos, ainda que os associem com amor, proteção e disciplina.
A Lei da Palmada, como era conhecida, segue agora para o Senado com um novo nome: Lei Menino Bernardo, em homenagem ao garoto Bernardo Boldrini, que foi encontrado morto em Três Passos (RS), em abril.
A lei prevê uma alteração no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com a intenção de explicitar o que não foi posto claramente há 24 anos, quando da sua criação. “Desde então, o ECA trata dos maus tratos, mas sem especificar os tipos de castigo”, explica Angelica Goulart, secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente. O novo texto define “castigo físico” como “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em sofrimento físico ou lesão à criança ou ao adolescente” e “tratamento cruel e degradante” como “conduta ou forma cruel de tratamento que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize”.
Paulo Sérgio Pinheiro, membro da Comissão da Verdade, descreveu a mudança como uma “cirurgia à laser no ECA”, e complementou: “Quando se trata de direitos humanos, temos de ser principistas. Assim como os adultos, as crianças são seres de direito, não ‘minicidadãos’, com ‘minidireitos’. E os seus direitos precisam ser traduzidos em lei”.
Diante desse panorama, muitos pais temem perder a autoridade e o controle sobre a educação dos filhos, por não poderem mais aplicar “uma palmadinha de vez em quando”. Mas especialistas alegam não haver, sequer, o menor risco de isso acontecer. “É o diálogo que coloca limites. A força física apenas gera medo e o medo faz obedecer, mas não transmite princípios, nem impõe respeito”, defende Ângela Soligo, especialista em psicologia educacional na Universidade de Campinas (Unicamp), interior de São Paulo.
A educadora Ângela Soligo, que repudia toda e qualquer forma de agressão contra criança e adolescente, também comenta: “Nessa discussão, temos de pensar o que, afinal, é educar. É só ensinar a obedecer? Claro que não. Educar é ensinar valores e uma ética que a criança vai levar para a vida inteira, para fazer boas opções nas suas situações de conflito. Quando se lança mão da agressão, o exemplo que os pais passam é o de que, se a conversa não funciona, pode-se ‘partir para a ignorância’”.
A palavra deve ser a base de qualquer educação. Angelica Goulart concorda e argumenta que: “Quando se castiga fisicamente, se está ensinando que a violência é legítima e, portanto, que a criança pode reproduzi-la em suas relações. Ou seja, violência pode gerar mais violência”.
Envolvido com essa questão, o Educar para Crescer levantou orientações essenciais para uma educação sem palmada. Leia e reflita:
1) Conversar é o melhor método:
Muitos pais alegam usar a palmada quando a conversa não surte efeito. Mas especialistas recomendam: é preciso falar, repetir, tornar a repetir e fazer combinados. Sempre fazendo uso de uma linguagem inteligível à criança, de acordo com sua faixa etária. “É perfeitamente possível educar só com base na conversa. Quando os ensinamentos e limites vêm do diálogo, a criança entende que eles se aplicam a todas as situações semelhantes”, adverte Ângela Soligo.
A especialista contesta outro argumento comumente apresentado pelos pais que é o uso do castigo físico para garantir proteção aos filhos quando eles ainda não têm consciência do perigo. Ou seja, bate-se para que a criança não volte a atravessar a rua sozinha ou não tente novamente colocar a mãozinha na tomada. “Isso é uma grande bobagem. O papel do adulto é proteger. O amor e a preocupação do pai ou da mãe têm de se manifestar na forma de cuidado, e não de castigo corporal. A criança, por menor que seja, entende quando você traz uma situação que ela reconhece. ‘Olha, se você colocar o dedinho aí, vai doer como doeu na vez em que você prendeu na gaveta’. Ou seja, choque ela ainda não sabe o que é, mas dor, sim”.
O Comitê dos Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU), trata de diferenciar força usada para punir de força usada para conter e/ou proteger. “Como adultos, nós próprios sabemos distinguir uma ação física protetora de uma agressão punitiva; não é mais difícil fazer tal distinção quando se trata de ações envolvendo crianças. Em todos os Estados, a lei, explícita ou implicitamente, permite o uso da força não-punitiva e necessária para se proteger uma pessoa.”
2) Entender os comportamentos de cada idade:
É preciso desconstruir o mito de que toda criança é um serzinho terrível e impossível de controlar. Muitos pais vivem em estado de alerta com essa ideia, mas, às vezes, trata-se de uma questão de relembrar um pouco como é ser criança. Um bebê de dois anos, por exemplo, pode apelar para a birra para manifestar uma frustração, um cansaço, ou seja, sentimentos que ele ainda não consegue expressar de outra forma, como faz o adulto. E os pais não podem, necessariamente, interpretar isso como malcriação e ir logo batendo, sacudindo ou mesmo se irritando.
“Muitas vezes a criança não tem poder para mudar uma situação que a desagrada, como ir embora do supermercado, então faz birra”, exemplifica Ângela Soligo. Para ela, muitos pais resistem em alterar alguns hábitos depois do nascimento dos filhos, mas isso é inevitável. “A rotina tem que mudar, para acomodar as necessidades das crianças. Não se pode exigir que elas fiquem bem aonde quer que as levemos.”
3) Repreender de um jeito melhor:
Quando um adulto erra, ele é punido com as consequências de seu próprio ato. Por que, então, a punição para uma criança que erra deve ser palmada, chinelada ou outro tipo de castigo físico? Não seria mais coerente introduzir-lhe, desde sempre, a ideia de causa e consequência? É o que propõem os especialistas.
“A criança vai à casa do coleguinha sem avisar a mãe, que cai em preocupação. Ao retornar, qual pode ser a conduta? Ela tem de conversar, manifestar o sofrimento que isso lhe causou e dizer que a criança terá de ficar um tempo sem voltar ao coleguinha, até que a confiança seja refeita”, mostra Ângela Soligo. De acordo com a pedagoga, o castigo não pode ser aleatório, e sim estar diretamente relacionado ao erro cometido, para a criança perceber a consequência.
4) Identificar a violência:
Por que se bate em crianças e adolescentes? Uma das explicações pode ser: porque as famílias, ao fazerem isso, não se reconhecem cometendo violência. Elas relacionam com correção, com educação e até com demonstração de amor. “Mas ligar agressão física a amor é de uma perversidade inaceitável”, aponta Ângela Soligo. Para ela, o interesse dos pais pela vida dos filhos, a preocupação e a demonstração da tolerância, por meio do diálogo, é que demonstram amor e educam.
Paulo Sérgio Pinheiro também não acredita em palmadinha delicada ou pedagógica. “As crianças não são propriedade dos pais e elas precisam ter sua integridade física respeitada. Eu vejo o castigo físico em crianças como uma sobrevivência autoritária do pátrio poder. Então a democracia tem de parar na soleira das portas das casas? Com certeza não.”
Outra explicação para a sobrevivência dos castigos físicos até os dias de hoje está no fato de que reproduzimos a educação que recebemos. Segundo pesquisa Datafolha divulgada em 26 de julho de 2010, 72% dos adultos de hoje em dia já apanharam dos seus pais. Para Angelica Goulart, isso faz com que essa “estratégia” seja continuada em gerações seguintes. Por isso ela é a favor de o governo investir em políticas públicas que levem instrução às famílias. “Ninguém nasce sabendo praticar paternagem e maternagem. É preciso fazer campanhas de educação.”
5) Ver o sinal de descontrole:
Dia intenso de trabalho, trânsito para voltar para casa, contas a vencer, jantar por fazer e o maior cansaço. É nesse contexto que, se o filho arrisca desobedecer ou fazer birra, aparecem as palmadas, os tapas e os beliscões. Segundo especialistas, a punição física surge, na maioria das vezes, num momento de descontrole dos pais, de impaciência e intolerância. E, passada a raiva, vem a culpa, e é aí que mora outro problema, que é o ganho secundário da criança.
“Ela sabe que, depois que os pais batem, eles se arrependem e, então, fazem sua vontade. Infelizmente, essa é uma postura comum nas famílias”, diz Maria Irene Maluf, especialista em psicopedagogia e neuropedagogia, de São Paulo.
A especialista aponta, ainda, outro motivo para deixar as palmadas de fora das situações de conflito vividas com a criança. “Os filhos acabam se tornando dependentes do tapa para pararem [com a birra, com o esperneio, com a desobediência etc.]. E é essa mensagem que você quer passar para eles? A de que precisam apanhar para se acalmarem?”
A questão esbarra em um dos mantras da educação que é a transmissão do exemplo: para a criança, tudo o que os pais fazem é considerado modelo de conduta. Então beliscar pode? Bater no colega pode? É desta maneira que eu resolvo minha irritação?
6) Ofender é tão grave quanto:
Ofender, ridicularizar e humilhar verbalmente também são formas de violência, e podem deixar marcas profundas na criança ou no adolescente. E o problema é que os pais dificilmente percebem uma agressão na violência verbal. “Eu não esperava outro comportamento de você”, “Você não vai chegar a lugar nenhum desse jeito”, “Você deve ter algum problema sério”, “Seu irmão é muito mais esforçado” são frases pronunciadas nos meios familiares (e escolares) com uma frequência muito maior do que se imagina, segundo Maria Irene Maluf. Para esta psicopedagogia e neuropedagogia, a consequência recai diretamente na percepção do amor (a criança deixa de se sentir amada com o passar do tempo) e na autoestima, o que pode afetar, futuramente, sua vida profissional, familiar ou amorosa.
7) O caminho da Lei da Palmada no Brasil:
A primeira tentativa de proibir castigos físicos no Brasil surgiu em 2003, com o projeto de lei da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS). Mas esse projeto não foi votado, entre outras razões, por ser contundente na criminalização dos pais, que recairia principalmente sobre as famílias mais pobres. Em 2006, contudo, teve início uma nova campanha de mobilização apoiada pela Secretaria dos Direitos Humanos, pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e pela Frente Parlamentar Pelo Direito da Criança. Com a contribuição do Ministério da Justiça e do Desenvolvimento Social, o projeto chegou ao Executivo, sendo encaminhado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Congresso Nacional em 14 de julho de 2010, um dia após a comemoração dos 20 anos do ECA.
8) Contra a lei e a favor da palmada:
O que seria do sistema democrático se não fossem as vozes dissonantes? No caso da Lei Menino Bernardo, elas são muitas.
Para se ter uma ideia, 54% das pessoas consultadas na pesquisa Datafolha se posicionaram contra o projeto de lei apresentado pelo presidente Lula.
Dante Donatelli, autor de “A vida em família” e “Quem me educa?” (ambos pela editora Arx), discorda tanto da intromissão do Estado no âmbito familiar quanto da ideia de que a palmada pode deixar marcas negativas na criança. “O Estado não tem direito de intervir na relação familiar e, mesmo que tente regular a vida no âmbito privado, não tem como aferir isso. Além disso, o ECA já preserva a criança de atos violentos, de espancamento. E a palmada não passa por aí. Ela é um ato instintivo, ligado ao amor do pai e à preocupação. Tenho certeza que o tapa não cria desamor”, contra-argumenta.
Fonte: Educar para Crescer